Fomos a Zablocie de bonde para visitar a Fábrica de Schindler pela manhã e aproveitamos para almoçar e dar um giro por Kazimierz à tarde. O bairro existe desde o século XIV e abrigava grande parte da comunidade judaica, que sempre sofreu perseguições por parte dos cristãos. Essa perseguição aumentou ainda mais no século XV quando os judeus foram banidos de Cracóvia e se instalaram lá definitivamente. O nome, Kazimierz, é em homenagem ao Rei Casimiro, o Grande, e antigamente o bairro era considerado uma cidade adjacente à Cracóvia, e não parte dela.
Durante a 2a Guerra Mundial ele abrigava a maior comunidade judaica de toda a Polônia, portanto foi o que mais sofreu com a invasão nazista, pois a população foi expulsa de suas casas e obrigada a ir viver confinada no gueto de Podgórze, do outro lado do rio Vístula (veja o mapa no final desse post). Após a libertação, poucos quiseram voltar a viver ali, e hoje, embora ainda seja conhecido como “bairro judeu”, Kazimierz não tem muitos judeus morando lá.
A ulica (rua) Szeroka é o centro do bairro e manteve algumas das fachadas de seus comércios exatamente como eram antes da invasão nazista. Eles ainda pertencem às famílias locais e funcionam normalmente, mesmo sendo patrimônio tombado. Além das Sinagogas bem preservadas, há vários restaurantes de comida judaica e bares diferentes, portanto vale uma caminhada, uma cerveja ou uma cidra no Bar Alchimia e um bom almoço no Once Upon A Time in Kazimierz. Foi o que fizemos e isso nos deixou viva a cor local.
Sugerimos fazer o passeio com um guia ou estudar antes de ir. Se você não souber direito onde está e nem a história por traz daquelas ruas, casas e edifícios, Kazimierz irá parecer apenas mais um bairro tranquilo da cidade, mas ele é, certamente, muito mais que isso.
Fábrica de Oskar Schindler
Aberta em 2010, a Fábrica de Oskar Schindler é hoje um museu no distrito de Zabloci (ul. Lipowa 4), próximo a Kazimierz e tem como foco a ocupação nazista na cidade. Durante a 2ª Guerra Mundial o empresário ganhou muito dinheiro e conseguiu salvar as vidas de 1.100 judeus ao fim da guerra em 1945, fazendo-os trabalhar para ele.
O trajeto começa com fotos que mostram como era a vida dos habitantes da cidade antes da invasão nazista no verão de 1939. Em seguida imagens e recortes de jornal da época da invasão descrevem a dissolução da Universidade e a prisão de todos os professores e intelectuais (uma das primeiras medidas do Reich), além das sanções cada vez mais duras impostas aos judeus, publicadas diariamente nos jornais e fixadas pela cidade. Dentre ela a proibição de pegar bondes, a obrigatoriedade de fixar a estrela de Davi na roupa, a proibição de se andar pelas calçadas (tinham que andar pelas sarjetas), os tickets para poder comprar comida, os cartões permissão de trabalho para poder sair do Gueto para ir à Fábrica…
Há algumas réplicas das vitrines das casas de comércio da época como Barbearia e Chapelaria (quando vimos, nos lembramos das lojas da Rua Szeroka). Há também cartas e relatos, principalmente as cartas do Farmacêutico do Gueto, Tadeusz Pankievicz.
As razões dadas pelas autoridades da ocupação para estabelecer um “distrito residencial judeu” foram “supervisão policial e saúde”. Na propaganda alemã os judeus era apresentados como portadores de doenças. Diziam que isolá-los era para a proteção de ambos os alemães e os poloneses quando, na verdade, o Gueto era um campo de trabalho onde os residentes eram escravos explorados a serviço do Terceiro Reich. O gueto abrangia várias ruas em que havia cerca de 320 casas, de um ou dois andares. Antes da criação do gueto elas eram habitadas por aproximadamente 3 mil pessoas e, de uma hora para outra, passaram a abrigar 20 mil.
Durante a 2ª Guerra a Polônia perdeu 6 milhões de cidadãos, incluindo 3 milhões de judeus. Logo no início da ocupação nazista, todos os dias eram publicadas as listas com os nomes dos condenados à morte pelo Regime de Hitler. Hans Frank, o comandante que administrava o território polonês chegou a dizer:
Se eu tivesse que colocar um cartaz para cada sete polacos fuzilados, não haveria florestas suficientes na Polônia para fabricar o papel
O Papa João Paulo II (Karol Wojtyla), embora católico, foi um dos polacos enviados para trabalhar em uma pedreira e essa história também está lá.
As fotos, cartas e diários e as reconstruções de cenas da vida diária ajudam a criar uma imagem realista de como teria sido a vida para muitas famílias encerradas nos guetos, saindo apenas para trabalhar exaustivamente nos campos de trabalho forçado e voltando para os aposentos superlotados, dia após dia.
No escritório de Schindler há uma mesa em frente a um grande armário de vidro cheio de produtos esmaltados, como os que eram produzidos ali.
Já quase no final da guerra, no verão de 44, o exército russo chegou à Polônia. Os alemães já começavam a se retirar e o povo polonês viu a chance de se libertar da ocupação nazista. As forças armadas clandestinas polonesas lançam uma revolta armada em Varsóvia, que acabou dizimada e grande parte da cidade praticamente destruída. No museu pode-se ver fotos dos membros da resistência e jornais da época com notícias sobre a Resistência Polonesa. Essa história é contada no filme Miasto 44, sobre o qual falamos no post Polônia no Cinema.
No final, um painel gigante mostra as fotos e nomes de todos os 1.100 judeus salvos por Schindler.
A visita guiada oferecida pelo Museu é ótima e custa 21 zloty por pessoa. Recomendamos ver A Lista de Schindler novamente antes da visita ou ler sobre o assunto, além de também fazê-la com guia, caso contrário vai achar que é simplesmente um “museu pequeno” e não vai entender a importância de cada pequeno item lá dentro e a história que ele conta. Enfim, o Museu traz tudo o que vimos em filmes como A Lista de Schindler e O Pianista, tudo documentado!
Curiosidade: Roman Polanski viveu no gueto de Cracóvia e é um dos sobreviventes do holocausto. Seu pai foi mandado ao campo de trabalhos forçados de Mauthausen e também sobreviveu, já sua mãe foi mandada a Auschwitz e foi morta assim que chegou. O filme O Pianista, dirigido por ele, conta a vida do músico Wladyslaw Szpilman (outro sobrevivente que viu de perto a liquidação de um gueto – o de Varsóvia).
Apteka pod Orlem
A antiga farmácia do Gueto de Cracóvia (Bohaterow Getta, 18) pertencia a Tadeusz Pankiewicz, o único não-judeu (era católico) que os nazistas permitiram permanecer no gueto após o seu estabelecimento em 1941. Tadeusz convenceu os nazistas de que se não ficasse poderia haver epidemias, como o tifo, que atingiriam também os soldados. Assim ele ajudou a população o máximo que pode, tratando os doentes e passando mensagens e até dinheiro, clandestinamente, entre os membros da resistência.
De sua farmácia, bem em frente à Plac Zgody, ele testemunhou a violência nazista, inúmeras execuções e posteriormente a evacuação do Gueto, quando, reunidos na praça, os judeus foram transportados aos campos de extermínio.
“A praça está fervendo de oficiais da SS e da Gestapo de todas as patentes, a maioria deles empunhando chicotes ou porretes (…) Todos os chicotes e porretes descem pesadamente sobre as cabeças e corpos de quem está lá, independente da idade ou sexo” (Tadeuz Pankiewicz)
No Museu da Fábrica de Schindler também há extratos dos registros feitos em seu livro de memórias sobre os terríveis eventos que presenciou. Tadeusz morreu em 1993 e, assim como Oskar Schindler, recebeu a medalha de O Justo entre as Nações. Vale a pena conhecer essa história.
Antigo Gueto de Podgórze
Andando pelo antigo gueto de Podgórze ainda é possível ver algumas das construções que foram habitadas pelas famílias judias que se amontoavam nesses imóveis. (Mais de 20 mil pessoas foram obrigadas a viver onde antes viviam cerca de 3 mil!). Depois do fim da Guerra, muitos dos reais donos desses imóveis jamais apareceram para retomar a propriedade e vários permanecem fechados e deteriorados. Entretanto, algumas das casas que foram reformadas são alugadas, principalmente para estudantes, pois é um lugar barato. Visitamos um desses antigos cortiços com o Marcin Rainer (nosso guia).
No Museu de Schindler há relatos da vida nos cortiços do gueto, como os do médico Julian Aleksandrowicz (1908 – 1988).
“Que contraste! Em alguns dos apartamentos do gueto as orações, os choros e gemidos dos órfãos, e logo do outro lado da parede – a música, a vodka e a intemperança sem restrições. “Nossa rendição será daqui a apenas algumas horas”, pensam os participantes. “Os homens da polícia nazista vão nos arrastar para fora, para o pátio. Pelo menos que nos arrastem atordoados pelo álcool, sentindo que satisfizemos nossos desejos básicos. Afinal, o que conseguiremos nós, de mãos vazias? O que podemos fazer diante de tanto mal?”
Plac Bohaterow Getta
A Praça dos Heróis (Plac Bohaterow Getta, antigamente chamada de Plac Zgody) está onde costumava ser o centro do Gueto de Cracóvia. O portão principal do gueto ficava onde hoje é a entrada da praça para quem vem do rio Vístula. Em março de 1941 os alemães trancaram os judeus de Cracóvia dentro do recém estabelecido gueto. As cadeiras fazem referência à evacuação de Podgórze quando todos os judeus foram transportados para campos de concentração e extermínio, deixando para trás, empilhados na praça, todos os seus pertences. Trata-se de um espaço de ausência. Cada cadeira representa 1.000 enviados para Auschwitz e outros campos. São 68 cadeiras.
“Na Plac Zgody se deteriora uma incalculável quantidade de armários, mesas, cômodas e outros móveis, que se levaram de cá para lá não se sabe quantas vezes” (Tadeuz Pankiewicz)
Stara Synagoga
A Velha Sinagoga (Stara = Velha) na ulica Szeroka nº 24, em Kazimierz, é a sinagoga mais antiga ainda em pé em Cracóvia (data do séc. XV), além de ser uma das mais representativas da arquitetura judaica na Europa. Ela foi completamente devastada e saqueada pelos alemães nazistas durante a 2ª Guerra Mundial e suas obras de arte e relíquias roubadas. Em 1943, 30 reféns poloneses foram fuzilados em frente a uma de suas paredes. Totalmente renovada nos anos 50, ela é hoje uma das divisões do Museu Histórico de Cracóvia. Não pudemos visitá-la por dentro, por falta de tempo durante o passeio guiado, mas valeu a pena conhecer um pouco da história.
Sinagoga Remuh e Cemitério Judeu
A Sinagoga Remuh é de 1553 e um dos símbolos da reconstrução do bairro após a 2ª Guerra e da resistência do povo judeu. Hoje é a sinagoga mais ativa do bairro. Junto a ela está o antigo cemitério, que foi profanado pelos nazistas que faziam os próprios judeus retirarem as lápides para que fossem usadas como calçamento nos Campos de Trabalho Forçado. Faziam isso para impor ainda mais humilhação ao povo e sua fé. Ainda hoje, após muita pesquisa, muitos túmulos ancestrais não puderam ser identificados. Os corpos de milhares de mortos pelos nazistas durante a liquidação do gueto de Podgórze entre junho de 1942 e março de 1943 também foram enterrados lá. Seus muros conservam a arquitetura característica – a mesma que foi ironicamente usada pelos nazistas para construir os muros do Gueto em 1941. (O filme A Lista de Schindler mostra esses acontecimentos e no Museu da Fábrica de Schindler há fotos).
Once Upon a Time in Kazimierz
Fomos almoçar no Once Upon a Time in Kazimierz após o tour a pé por Kazimierz e a escolha foi perfeita. O restaurante fica na ul. Szeroka, nº1 num grande casarão cuja fachada é bem rústica. O interior tem uma decoração colorida e acolhedora. Chegamos sem reserva, por volta de 13:30, mas conseguimos uma boa mesa, apesar de já haver vários clientes ali. O atendimento foi muito bom e embora nosso guia fosse polonês, o cardápio em inglês facilita fazer o pedido para quem não fala a língua. Comi um excelente prato de fígado de frango frito e Ede, o ensopado judaico, feito com feijão. Ambos estavam muito bons. Pedimos também duas saladas da casa e tomamos um vinho branco local, também da casa. Nosso guia, o Marcin, também comeu o ensopado e assim como eu, pediu um suco de mirtilo. Para a sobremesa nós três experimentamos o famoso cheesecake com passas, uma especialidade local. Ao todo gastamos 169 sloty, um valor bem justo para três boas refeições completas.


Bar Alchemia – Porta para Nárnia
O Bar Alchemia, na ul. Estery nº5, fica num edifício muito antigo e, olhando-se por fora, nada chamativo, o que é bem comum em Cracóvia. Entretanto é só entrar para se ter uma surpresa muito agradável, pois o Bar tem uma decoração legal. Papel de parede vermelho escuro, quadros e lustres antigos deixam o ambiente com um ar sofisticado. O mais inusitado é que para se passar de um salão ao outro é preciso atravessar um guarda roupas e não uma porta! Adoramos o lugar, embora a visita tenha sido rápida (só para tomar uma cerveja e uma cidra) durante o tour pelo bairro judeu com o Marcin, nosso guia polaco. Valeu a pena conhecer essa joia!
Kosciol na Skalce
Para terminar o passeio por Kazimierz, já retornando para Stare Miasto, o Marcin nos levou para conhecer um dos principais destinos de peregrinação da Polônia, a Kosciol na Skalce, às margens do Rio Vístula, na ul. Skaleczna, 15. Skałka, que significa pequena rocha em polonês, é uma pequena colina na Cracóvia onde o Bispo da cidade, Estanislau, foi morto por ordem do rei em 1079. São Estanislau tornou-se o santo protetor da Polônia. É um dos santuários mais famosos do país e é realmente muito agradável. Fomos num dia de sol, o que deixou o local ainda mais bonito. Uma estátua do Papa João Paulo Segundo sentado num banco no jardim convida a sentar e meditar, ou apenas descansar após um dia de andanças pela cidade. Há também uma fonte com um portal muito bonito e o interior da igreja é em estilo gótico.
O mapinha abaixo ajuda na localização – dá bem para fazer tudo à pé, sem problemas!
Veja também:
Stare Miasto – A Velha Cracóvia I